Premeditado ou inconsciente: considerações sobre o ato do suicídio

Premeditado ou inconsciente: considerações sobre o ato do suicídio, por Cléscio Galvão

O suicídio sempre mereceu atenção dos doutos, pois sua essência contraria o princípio basilar da vida. A literatura é robusta em relação ao tema, passando por sua análise científica e indo até os arroubos dos romancistas, que sempre buscaram no suicídio um fecho melodramático para as tramas enredadas nos contos, produzindo, geralmente, a consternação dos circunstantes e, às vezes, comoção em toda a coletividade onde ocorre. Embora tenha seus apologistas, o suicídio é condenado pela maioria das pessoas à luz da moral, da religião e do direito, sendo para este último, no que concerne àqueles que participam ou induzem ao ato.

Por suicídio deve-se entender a morte dada a si mesmo voluntariamente, o que vale dizer que o requisito da voluntariedade está implícito para sua caracterização. É relevante destacar, contudo, que nem todo suicídio é voluntário ou consciente, havendo, pois, de se fazer a distinção entre o suicídio consciente (premeditado) e o inconsciente. No último caso, pode originar-se de um estado mórbido do agente, em que sua decisão de auto-eliminação perde as características de um ato premeditado, para configurar-se num ato resultante de uma anormalidade psíquica. Anormalidade esta que pode ser permanente ou temporária, com motivações e fundamentos explicados pela psiquiatria (e/ou pela psicologia), como sendo um fenômeno decorrente de perturbações da saúde mental, dentre eles as modernas patologias da depressão e o stress. O padecimento do agente resulta de uma fatalidade, pois não foi fruto de seu juízo normal, simplesmente obedeceu a forças irresistíveis.

Nessa seara, inúmeros embates e discussões doutrinárias foram travados. Criada a figura do suicídio premeditado, caberia então às seguradoras, face aos princípios que regulam o ônus da prova, provar não só o suicídio, como também sua voluntariedade objetiva (premeditação). Essa posição desfavorável das seguradoras trouxe um certo desequilíbrio para as carteiras de seguros, maculando o princípio do mutualismo.

Apesar da polêmica doutrinária travada no sentido da definição do suicídio como ato voluntário ou não, a questão de saber se o segurado premeditou ou não sua morte, com a finalidade de beneficiar entes queridos com o valor da indenização securitária correspondente, é tarefa de extrema complexidade. A falta de um critério seguro para distinguir essa possibilidade faz com que sua comprovação, na prática forense, seja, além de constrangedora para a família do suicida, quase sempre mal-sucedida.

Pelo direito pátrio, cabe a quem alega o ônus da prova. Assim, reclamado o sinistro de morte do segurado por suicídio, pressupõe-se de início ser o mesmo inconsciente. Se o entendimento do segurador for contrário, pela premeditação do ato, haverá ele de se desincumbir das provas nesse sentido. Porém, dificilmente serão encontrados elementos de prova cuja robustez e consistência levem precisamente a esse entendimento. A base para essa convicção está fundada nos elementos indiciários de prova, alicerçados em si nos fatos motivadores e corroborados pelos demais componentes do conjunto probatório ofertado pelas partes em contraditório.

Cabe, contudo, ressalvar que a questão não está de todo resolvida, pois o ordenamento civil em vigor pode, na verdade, impulsionar as condutas ilícitas, já que assegura de forma legal o recebimento da indenização securitária se o suicídio ocorrer após o período de carência, independente se voluntário ou involuntário.

Vale salientar que o período de carência não isenta a premeditação do ato do suicídio voluntário, posto que este depende dos fatores motivadores, os quais podem somente se materializar depois de decorrido este lapso temporal. Mesmo nesta hipótese o suicídio não fugiria à caracterização da premeditação.

Há de se lembrar que mesmo com cláusula de carência, a seguradora está tolhida de assumir o risco do suicídio premeditado ou consciente, porque tal risco lhe é vedado assumir pela moral e pelo direito positivo, pois se vinculará a dolo do segurado, antítese da boa-fé. Subsistirá, porém, o risco do suicídio inconsciente.

No nosso entendimento, a cláusula de incontestabilidade diferida, positivada no art. 798 do Código Civil, servirá tão-somente para diminuir o número de demandas judiciais, já que no período inicial de vigência da apólice de dois anos está afastada de plano a cobertura securitária para qualquer caso de suicídio.

Transcorrido o período de carência de dois anos e ocorrido o sinistro de suicídio, haverá a velha polêmica sobre o tema: trata-se de suicídio consciente (premeditado) ou foi inconsciente? As demandas continuarão a bater à porta do Judiciário em busca da solução. Daí então continuar atual a discussão sobre a questão probatória, pois é com base em seu conjunto que o julgador iluminará sua consciência e proferirá a decisão.

Fica a grande dificuldade dos operadores do direito e técnicos em seguros em determinar se o caso concreto trata-se de suicídio consciente (premeditado) ou inconsciente. Ao Judiciário, responsável pela solução dos conflitos, caberá apreciação do caso concreto, não devendo afastar-se da prova indiciária, tão importante e talvez única nesse contexto, ante a complexidade da caracterização do suicídio premeditado.

A análise do caso concreto certamente levará à pacificação da jurisprudência, dando uma interpretação ao texto do art. 798 do Código Civil em consonância com o princípio da boa-fé, insculpido no mesmo diploma em seu art. 422.

 

 

por Cléscio Galvão, advogado, especialista em fraude em seguros.

Artigo originalmente  publicado em http://cadernosdeseguro.funenseg.org.br/secao.php?materia=27